1.A criança/jovem com multideficiênciaAlgumas crianças/jovens apresentam uma combinação de acentuadas limitações em diversos domínios (cognitivo, motor e/ou sensorial), que condiciona gravemente o desenvolvimento e o acesso à aprendizagem e participação.
A interacção entre as diferentes limitações influencia, não só o seu desenvolvimento, mas também a forma como aprendem e como funcionam nos diferentes ambientes de vida, daí decorrendo necessidades únicas e excepcionais.
As
pessoas com multideficiência são indivíduos com limitações acentuadas no domínio cognitivo, associadas a limitações no domínio motor ou no domínio sensorial (visão ou audição) e que requerem apoio permanente, podendo ainda necessitar de cuidados de saúde específicos. De acordo com The Association for Persons with Severe Handicaps (TASH) esta população “
inclui indivíduos de todas as idades que necessitam de apoio intenso e continuado em mais do que uma actividade normal do dia-a-dia, de forma a poderem participar em ambientes de comunicação.”A multideficiência é uma condição que resulta, frequentemente, de uma etiologia congénita ou adquirida, e que do ponto de vista educacional exige recursos e meios adicionais que respondam adequadamente às necessidades das crianças/jovens, promovendo aprendizagens significativas.
Os alunos com multideficiência podem apresentar características muito diversas, as quais são determinadas, essencialmente, pela combinação e gravidade das limitações que apresentam, pela idade em que surgem e pelas experiências vivenciadas.
Constituem, portanto, um grupo muito heterogéneo e consequentemente, são alunos com necessidades de aprendizagem únicas e excepcionais que evidenciam um quadro complexo e precisam de apoio permanente na realização da maioria das actividades quotidianas, como seja a alimentação, a higiene, a mobilidade, o vestir e o despir.
Embora constituam uma população heterogénea é comum manifestarem acentuadas limitações ao nível de algumas funções mentais, bem como acentuadas dificuldades ao nível da comunicação e da linguagem (de referir dificuldades na compreensão e na produção de mensagens orais, na interacção verbal com os parceiros, na conversação e no acesso à informação) e ao nível das funções motoras, nomeadamente na mobilidade (por exemplo: no andar e na deslocação, na mudança de posições do corpo, na movimentação de objectos e na motricidade fina). Podem apresentar também, limitações nas funções visuais ou auditivas, sendo frequente coexistirem graves problemas de saúde física, nomeadamente epilepsia e problemas respiratórios.
Relativamente à actividade e participação destes alunos, as suas maiores dificuldades situam-se a nível:
· dos processos da interacção com o meio ambiente (com pessoas e objectos);
· da compreensão do mundo envolvente (dificuldade em aceder à informação);
· da selecção dos estímulos relevantes;
· da compreensão e interpretação da informação recebida;
· da aquisição de competências;
· da concentração e atenção;
· do pensamento;
· da tomada de decisões sobre a sua vida;
· da resolução de problemas.
De realçar, ainda, que a qualidade e quantidade de informação recebida e percebida é normalmente limitada e distorcida, devido, em parte, às suas limitações mas também ao facto de terem poucas experiências significativas.
Como se depreende estas limitações e dificuldades fazem com que estes alunos compreendam o mundo de modo diferente, precisem de ter mais experiências significativas para manterem as competências já desenvolvidas e necessitem de vivenciar situações idênticas em diferentes contextos que facilitem a generalização de competências. Normalmente manifestam um tempo de resposta mais lento do que os alunos sem problemas, dão menos respostas e estas são mais difíceis de compreender, apresentando um desenvolvimento comunicativo inferior ao esperado para a sua faixa etária. Estes aspectos têm naturalmente influência na quantidade e na qualidade das interacções estabelecidas com o meio envolvente levando estes alunos a um reduzido número de parceiros e de ambientes. Estes alunos, normalmente, não usam a linguagem oral, o que lhes dificulta significativamente a comunicação com os outros. A incapacidade para usar a fala tem um impacto muito forte no desenvolvimento das capacidades individuais, no controlo do ambiente que as rodeia (mesmo o mais elementar aspecto da vida diária), para além das suas repercussões no desenvolvimento social.
As barreiras que se colocam à sua participação e à aprendizagem são muito significativas e faz como que necessitem de:
· apoio intensivo quer na realização das actividades diárias, quer na aprendizagem;
· parceiros que os aceitem como participantes activos e sejam responsivos;
· vivências idênticas em ambientes diferenciados;
· ambientes comuns onde existam oportunidades significativas para participar em múltiplas experiências diversificadas;
· oportunidades para interagir com pessoas e com objectos significativos.
Consequentemente, estes alunos precisam do apoio de serviços específicos, nos seus contextos naturais, sempre que possível, de modo a responderem à especificidade das suas necessidades. Estes apoios devem estar consubstanciados no seu plano educativo individual.
2.Pressupostos na educação de crianças com multideficiência
Assim, os pressupostos para a educação destes alunos são:
· a educação destes alunos deve centrar-se na actividade, e não apenas no desenvolvimento;
· a escola necessita de considerar as suas acções numa perspectiva de alargamento da sua participação e actividade em ambientes significativos;
· incluir oportunidades de aprendizagem no contexto real;
· a comunicação deve desenvolver-se em todas as actividades;
· o ensino deve ser individualizado e implementado de forma sistemática;
· os ambientes de aprendizagem devem responder às necessidades do aluno;
· criar condições para interagirem com os outros e para participarem activamente nessas interacções ( incluindo a interacção com alunos sem NEE);
· os contextos educativos devem envolver estes alunos nas actividades para que possam participar activamente na aprendizagem e sentirem-se aceites no grupo de pares.
3. Avaliação da criança/jovem com multideficiência
A informação recolhida deve permitir determinar o nível de funcionamento da criança/jovem e possibilitar a adequação da intervenção às necessidades detectadas. Para recolher essa informação, é necessário:
- decidir quais os procedimentos a adoptar, considerando a criança/jovem;
- adequar esses procedimentos à capacidade de resposta de cada uma;
- dar tempo à criança/jovem para responder e manifestar os seus comportamentos;
- possibilitar a existência de situações adequadas à manifestação desses comportamentos;
-verificar se os comportamentos ocorrem em diferentes contextos.
Perspectiva Desenvolvimental
Tradicionalmente, a avaliação centra-se numa abordagem desenvolvimental. Ou seja, neste tipo de abordagem a avaliação baseia-se no desenvolvimento típico da criança, procura avaliá-la seguindo a ordem do desenvolvimento nos diferentes estádios e inclui todas as áreas do desenvolvimento: motora, cognitiva, sócio-emocional, comportamental, linguística, etc. Nesta perspectiva a avaliação pretende identificar o nível de desenvolvimento em que a criança se encontra. No entanto, o desenvolvimento da criança com multideficiência não segue necessariamente os mesmos estádios do que a criança sem necessidades especiais, e vai existir uma discrepância entre o desenvolvimento e a idade cronológica.
Este tipo de abordagem centra-se basicamente, nas competências de aprendizagem específicas e não na qualidade da participação em ambientes reais da vida da criança (escola, comunidade, família).
Perspectiva Ecológica
Dadas as características da criança/jovem com multideficiência é importante avaliar as respectivas capacidades, competências e necessidades, bem como os ambientes onde funciona. É essencial privilegiar formas de avaliação que possibilitem obter uma imagem do seu funcionamento nas actividades naturais, em contextos naturais. A realização de uma avaliação centrada nos ambientes onde a criança/jovem se encontra e no modo como funciona nas actividades naturais parece ser mais adequada às suas características e facilita o seu envolvimento nas actividades.
Baseada na perspectiva ecológica, Losardo e Notari-Syverson (2002) sugerem que os docentes:
- conheçam as características culturais, linguísticas e étnicas da criança/jovem e respectivas famílias;
- conduzam a observação em ambientes e contextos naturais, para aumentar a validade ecológica dos dados dela retirados;
- identifiquem os actuais ambientes onde a criança/jovem funciona e os potenciais ambientes onde vai funcionar no futuro.
- Instrumentos
Como foi referido, um dos aspectos a decidir antes da realização da avaliação é a escolha do tipo de instrumentos a utilizar. Os profissionais podem usar instrumentos já existentes ou criarem os seus próprios instrumentos de avaliação.
Para poder efectuar-se uma avaliação ecológica centrada em actividades é importante dispor de instrumentos de avaliação que focalizem a criança/jovem com multideficiencia numa perspectiva interactiva, holística e compreensiva. Alguns exemplos de instrumentos são:
- “ Observação centrada em actividades naturais”, instrumento construído pelo Centro de Recursos para a Multideficiência (CRM) com base em “ Considerations for Planning Routine Based Intervention” Project TaCTICS;
- “Descrição das capacidades da criança/jovem”, baseado no modelo de avaliação desenvolvido por Nelson e van Dijk (1998).
O instrumento designado “Observação centrada em actividades naturais” tem como objectivo a recolha de informação específica sobre a forma como a criança/jovem funciona nas actividades que realiza diariamente e as estratégias utilizadas pelo adulto para a ajudar a realizar as actividades.
O instrumento denominado “ Descrição das capacidades da criança/jovem” destina-se a recolher e registar informação pertinente sobre as capacidades da criança/jovem e o modo como recebe e trata a informação proveniente do meio exterior.
4. Intervenção com a criança/jovem com Multideficiência
As informações recolhidas na avaliação possibilitam a elaboração de programas educativos adequados às capacidades e necessidades de criança/jovem com multideficiencia, tendo em consideração o seu futuro e as características dos ambientes de aprendizagem.
Os dados recolhidos têm significado na medida em que orientam a adaptação do currículo consubstancializado no Programa Educativo Individual. É essencial ter em atenção os interesses da criança/jovem, em termos das pessoas, dos materiais e dos espaços. Na elaboração do PEI é ainda indispensável definir as prioridades e os objectivos a alcançar, tendo em atenção as respectivas capacidades, as necessidades e preferências, bem como as prioridades da família, as necessidades do estabelecimento educativo e os diversos ambientes que ela frequenta. É também crucial delinear as estratégias a implementar e as actividades a desenvolver.
Relativamente aos aspectos específicos do currículo, o modelo do desenvolvimento curricular baseado na abordagem ecológica parece adequar-se às características e necessidades da criança/jovem com multideficiencia. Um currículo assente neste modelo estabelece uma relação entre as capacidades da criança/jovem e o seu ambiente envolvente. As capacidades a desenvolver são escolhidas em função da importância social e da idade e o acesso ao currículo é assegurado através dos apoios que recebe. O que se pretende que aprenda tem de ser significativo e relevante para o presente e para o futuro, as actividades têm de ser desenvolvidas nos ambientes onde naturalmente acontecem e a progressão do desenvolvimento deve ocorrer do mais simples para o mais complexo.
Usando objectos apropriados à idade cronológica e à estatura da criança, podem definir-se e delimitar espaços singulares que a ajudem a explorar de uma forma activa o ambiente, e se possível, auxiliem também a aprendizagem. Um dos espaços individualizados mais conhecidos é o designado “Little Room”, isto é, um espaço parcialmente fechado onde são pendurados alguns objectos que ficam acessíveis, fisicamente, à criança. Para além de outros aspectos, as repetições de comportamentos no Little Room podem auxiliar a criança com acentuadas limitações visuais a:
- construir uma imagem do espaço no qual se encontra;
- aprender a antecipar o que vai tocar e o que vai acontecer;
-perceber as características dos objectos que explora.
Os objectos a disponibilizar nos espaços individualizados devem ser seleccionados com cuidado e ter características que permitam dar à criança/jovem feedback sonoro, táctil e visual.