Em 1989 Uta Frith sugeriu que não é possível explicar alguns aspectos do funcionamento do autismo apenas pela “Teoria da Mente” – por exemplo, a insistência na semelhança, a atenção ao detalhe em detrimento da globalidade, a insistência na rotina, as preocupações obsessivas e a existência de capacidades especiais.
Os resultados de algumas investigações indicaram que as crianças com autismo tinham um desempenho melhor no teste das figuras integradas para crianças (CEFT – Children’s Embedded Figures Test) e no Teste de Construção de Blocos (Block Design Test) (um subteste da Wechsler Intelligence Scales for Children – III – WISC – III, Wechsler 1991). O Teste das Figuras Integradas para Crianças (CEFT, Witkin et al. 1971) implica a identificação de uma figura oculta, por exemplo, um triângulo, num desenho mais abrangente como, por exemplo, um carrinho de bebé. O Teste de Construção de Blocos requer que a criança junte blocos individuais segmentados de modo a corresponderem a um determinado desenho de conjunto, o que implica, primeiro, a desconstrução do desenho de conjunto nas peças individuais que o constituem. Frith argumentou que no autismo, o problema em realizar estas tarefas não era tanto superar a tendência para ver a imagem como um todo, mas sim não conseguir “ver” a imagem completa logo à partida. Deste modo, a vantagem demonstrada pelas crianças com autismo é atribuída especificamente à sua capacidade para ver mais as partes do que o todo. Frascesca Happé (1994) sublinhou o facto interessante de Kanner, já em 1943, ter considerado um dos traços universais do autismo “a incapacidade para se aperceber do todo sem dedicar toda a atenção às partes que o constituem”. Kanner também comentou a tendência para o processamento fragmentário e a resistência da criança à mudança: “uma situação, um desempenho, uma frase não são considerados completos se não forem constituídos exactamente pelos mesmos elementos que estavam presentes no momento em que a criança estava com eles pela primeira vez”.
Frith (1989) descreveu a “coerência central” como a tendência para reunir informações dispersas de modo a constituir um significado de nível superior no contexto. Para os indivíduos que processam normalmente as informações, existe uma tendência para dar sentido às situações e aos acontecimentos de acordo com o contexto. Isto não acontece com os indivíduos autistas.
- Um psicólogo pediu ao Bernardo, de cinco anos, sentado no seu gabinete com o livro de leitura no colo, para “sacar do livro”. Ele não percebeu e começou à procura de um saco. Mais tarde, a mesma criança leu do princípio ao fim uma história sobre crianças que, por ordem dos pais, levavam todos os seus brinquedos a uma quermesse, mas sempre a resmungar. Em seguida, com o dinheiro angariado, as crianças compraram novamente os brinquedos e voltaram para casa todos contentes para grande desagrado dos pais. O Bernardo simplesmente não percebeu a moral da história, apesar de conseguir identificar as imagens em que as crianças e os pais estavam tristes ou contentes, e relacionar o que tinham acontecido com os brinquedos. No entanto, mostrou-se muito interessado numa ventoinha que aparecia no canto de várias imagens.
-Quando o Rui protestou “Eu não sou nenhuma almofada!” em resposta ao comentário da avó em como “estava com uma fronha muito limpinha”, cometeu o mesmo tipo de erro.
Algumas dificuldades que se pode esperar que ocorram quando se verifica a dificuldade de reconhecer imagens de conjunto e dar sentido aos acontecimentos de acordo com o contexto, bem como a preferência pelo detalhe, incluem:
· Foco de atenção idiossincrático. A criança não se concentra necessariamente no que o educador pode considerar ser o foco de atenção, ou objectivo da tarefa, óbvio;
· Imposição da sua própria perspectiva. O que assume maior relevo para a criança vai determinar a sua perspectiva relativamente à situação de aprendizagem. (O Vasco vivia fascinado com castelos e cavaleiros. O professor organizou um trabalho na aula sobre caras e deu-lhe materiais de colagem para fazer a imagem de uma cara. O Vasco utilizou os materiais para fazer a imagem de um castelo!);
· Preferência por aquilo que é conhecido. Sem a capacidade para perceber rapidamente qual é o sentido das coisas, nem para acompanhar as acções e comunicações de terceiros, a criança sente-se mais segura mantendo os procedimentos já conhecidos e as rotinas já estabelecidas.;
· Falta de atenção para novas tarefas. Como educador vai ter dificuldades em entusiasmar um aluno com autismo a falar em ideias novas, estimulantes e interessantes, devido não só às suas dificuldades de comunicação como o facto do seu potencial interesse não ser reconhecido.;
· Dificuldade em fazer escolhas e atribuir prioridades. Sem um princípio de orientação ou um objectivo supremo a criança com autismo tem dificuldade em fazer escolhas e atribuir prioridades. (Quando lhe pediram para escolher os doces que queria, o Joaquim elaborou um quadro complexo com todas as categorias de doces e várias marcas para poder decidir se queria ovos de chocolate, chupa-chupas ou gomas e de que marca.);
· Dificuldades de organização pessoal, de materiais e experiências. Mais uma vez, sem um princípio de orientação ou um plano geral, a criança autista tem frequentemente dificuldades em todos os aspectos da organização. Possivelmente, não consegue encontrar o trabalho de Educação Visual e Tecnológica (EVT) na sala de aula habitual; não consegue orientar-se na escola a tempo da aula seguinte; nem consegue pôr na mochila os livros, os cadernos e o estojo de que provavelmente vai precisar. Na realidade, por mais de uma vez desatou a dar pontapés à mochila culpando-a por não tratar do respectivo conteúdo de forma eficaz.;
· Dificuldade em estabelecer associações e em generalizar capacidades e conhecimentos. As crianças com autismo podem demonstrar excelentes aptidões numa área de conhecimento e, no entanto, serem incapazes de generalizar numa série de situações. (O Cláudio é excepcional a Matemática sendo capaz de multiplicar com três algarismos de cabeça com apenas nove anos. Porém, quando o professor fez um teste na aula com diferentes apresentações das somas, o Cláudio ficou furioso e ansioso, e desatou a chorar dizendo: “Não me ensinou a fazer isto, não consigo”.);
· Incumprimentos. Para o professor com uma turma de 30 crianças os mais, provavelmente este é o aspecto mais exigente desta dificuldade. (O Adão passou os primeiros dois anos de escolaridade a vaguear livremente pela escola e pela sala de aulas.);
Todas estas dificuldades resultantes do proposto Défice de Coerência Central afectam a capacidade da criança para integrar a sua turma na escola, limitando a sua capacidade para colaborar ou simplesmente reparar nas necessidades de terceiros – o que afecta não só o comportamento mas também o pensamento e, consequentemente, a capacidade para tirar partido do currículo escolar.
Bibliografia:
Cumine, V., Leach, J., Stevenson G. (2006). Compreender a Síndroma de ASperger – guia prático para pais e educadores. Porto: Porto Editora