Autismo: Um Défice de Mentalização
(Funcionamento Psicológico)
Teoria da Mente
Por volta dos anos 80, surgiu uma nova teoria psicológica explicativa do autismo: a “Teoria da mente”. Os seus autores, Uta Frith, Alan Leslie e Simon Baron Cohen, sugeriram que a tríade de incapacidades comportamentais presentes no autismo resultaria de um impedimento da competência humana fundamental de “ler a mente dos outros”. Para esta definição recorreram à definição de Premack e Woodruff (1978): “a incapacidade de atribuir estados mentais independentes a si próprios e aos outros, de forma a prever e a explicar acções”. Esta teoria pretendeu identificar os défices fundamentais responsáveis pelos défices sociais no autismo, como falha no mecanismo mental da metacognição, aquele que coordena o “pensar acerca do pensamento”.
De um modo geral, a teoria da mente traduz-se na capacidade que o indivíduo desfruta de compreender os estados mentais dos outros, incluindo pensamentos, desejos e crenças e que funciona como instrumento precioso, permitindo a compreensão e predição do comportamento dos outros.
Relativamente ao autismo e perturbações associadas, esta teoria sugere que as pessoas afectadas, por uma perturbação desta natureza, falham ou atrasam-se no desenvolvimento da competência de comungar dos pensamentos dos outros, estando assim, limitadas de certas aptidões sociais, comunicativas e imaginativas (Happé, 1994).
Baron-Cohen e os seus colaboradores criaram o teste da Sally-Ann para investigar o possível comprometimento de crianças com autismo na habilidade de usar o contexto social para compreender o que outras pessoas pensam e acreditam. Para os autores, um dos aspectos fundamentais da teoria da mente é a compreensão do papel da crença na determinação de uma acção, ou seja, aquilo que a pessoa acredita pode ser mais relevante no desencadeamento de um dado comportamento do que quaisquer circunstâncias reais. Dessa forma, a consideração de falsas crenças seria tão importante na determinação de um comportamento quanto as reais.
Neste teste, uma boneca (Sally) coloca o seu brinquedo numa caixa e sai da sala. Enquanto isso, outra boneca (Ann) tira o brinquedo da caixa onde a Sally colocou o brinquedo e deposita-o num cesto. Pergunta-se à criança em qual dos recipientes a Sally provavelmente vai procurar o brinquedo quando retornar à sala. As crianças com autismo, ao contrário das crianças com desenvolvimento normal, mostraram dificuldades em perceber que Sally não tinha nenhuma informação a respeito da mudança de recipiente, e tenderam a responder que Sally procuraria o brinquedo no cesto onde a Ann colocou o brinquedo. Isto é, essas crianças demonstraram dificuldades em compreender o que Sally pensava e em predizer o seu comportamento com base no seu pensamento. Tais resultados foram replicados, subsequentemente, (Prior, Dahlstrom, & Squires, 1990; Ozonoff, Pennington & Rogers, 1991), excepto para as crianças com níveis mais altos de funcionamento global, e para aquelas com síndrome de Asperger, levando à conclusão de que crianças com autismo apresentam um atraso ou desvio no desenvolvimento da capacidade de desenvolver uma teoria da mente (Baron-Cohen, 1991).
De acordo com o psicólogo britânico Simon Baron-Cohen, as pessoas autistas tem cegueira mental. Sem uma teoria da mente seria muito difícil fazer o jogo político necessário para a vida na sociedade humana. Uma das coisas é que seria impossível mentir. Para que possamos mentir primeiro temos que entender que as outras pessoas podem ter crenças diferentes das nossas e que essas crenças podem ser falsas. Só então podemos tentar manipular as outras pessoas fazendo-as acreditar em coisas falsas. Por isso as crianças abaixo dos três anos de idade não conseguem mentir de forma convincente.
Frith sugere que este défice contribui para a tríade de incapacidades nas áreas de socialização, comunicação e imaginação, propondo um modelo causal, ilustrativo desta teoria. Esta teoria sugere, que apenas os comportamentos sociais que requerem mentalização (por exemplo, contar piadas, manter segredos) se encontram comprometidas, enquanto, os comportamentos sociais, que se baseiam no comportamento observável (por exemplo, reconhecimento da felicidade), não se encontram afectados. Em termos de linguagem, quando esta é usada como um código, a teoria não prediz défices fundamentais, no entanto, quando é usada para traduzir pensamentos, ou para ser compreendida como a expressão ou um significado, os indivíduos com PEA terão dificuldades específicas.
Estes resultados permitem concluir pela existência de suporte para uma teoria explicativa do autismo com base numa incapacidade básica destes sujeitos de mentalizar, contudo não permitem a sua aceitação como teoria explicativa do défice na sua globalidade.
Teorias Neuropsicológicas e de Processamento da Informação
Os estudos actuais que dizem respeito ao défice cognitivo nas PEA inspiraram-se no trabalho pioneiro de Hermelin e O’Connor (1970), que foram os primeiros a testarem, cientificamente, como as crianças autistas processavam a informação sensorial na resolução de testes de habilidades de memória e motoras. Eles concluíram que essas crianças mostravam défices cognitivos específicos, tais como: problemas na percepção de ordem e significado, os quais não poderiam ser explicados por deficiência mental, dificuldades em usar o input sensorial interno para fazer discriminações na ausência de feedback de respostas motoras e tendência a armazenar a informação visual, utilizando um código visual, enquanto as crianças com desenvolvimento normal usavam códigos verbais e/ou auditivos. Particularmente surpreendentes foram as respostas dessas crianças aos estímulos auditivos - a intensa resposta fisiológica a sons contrastava com a passividade geralmente demonstrada por essas crianças em situações envolvendo tais estímulos.
Resultados semelhantes foram descritos noutros estudos e teorias a respeito dos défices perceptivos em crianças com autismo os quais, apesar de adoptarem diferentes terminologias e interpretações, descreveram o mesmo fenómeno: a resposta atípica de crianças autistas a estímulos sociais e não-sociais. Alguns exemplos desses conceitos são: hiperselectividade sensorial (Schreibman & Lovaas, 1974), optimização da estimulação sensorial (Hutt & Hutt, 1968; Zentall & Zentall, 1983), input sensorial e modulação da atenção (Ornitz & Ritvo, 1976).
Teoria do Funcionamento Executivo (Função executiva)
Acredita-se que a capacidade de planeamento e desenvolvimento de estratégias para atingir metas está ligada ao funcionamento do córtex pré-frontal (Duncan, 1986). Essa habilidade envolve flexibilidade de comportamento, integração de detalhes isolados num todo coerente e o manuseamento de múltiplas fontes de informação, coordenados com o uso de conhecimento adquirido (Kelly, Borrill & Maddell, 1996). A hipótese do comprometimento da função executiva como défice subjacente ao autismo surgiu em função da semelhança entre o comportamento de indivíduos com disfunção cortical pré-frontal e aqueles com autismo: inflexibilidade, perseveração, primazia do detalhe e dificuldade de inibição de respostas. Essas características foram subsequentemente comprovadas pelos resultados do desempenho de indivíduos com autismo em testes destinados a medir funções executivas, como por exemplo, o Wisconsin Card Sorting Test (Heaton, 1981). Entretanto, uma das limitações desses testes é que eles não possibilitam a decomposição de funções cognitivas complexas em unidades elementares, o que permitiria a identificação da perturbação em funções específicas e a investigação da associação entre essas funções e diferentes patologias (Ozonoff, Pennington & Rogers, 1991).
Preocupados em fornecer uma descrição mais detalhada acerca das disfunções executivas implicadas no autismo, Ozonoff, Strayer, McMahon e Filloux (1994), utilizou-se o paradigma do processamento da informação num estudo, comparando grupos de crianças e adolescentes com autismo, com síndrome de La Tourette e com desenvolvimento típico. Os achados foram que o grupo de autistas obteve um desempenho comparável ao grupo de controlo em tarefas que exigiam processamento global/local (atenção ao detalhe ou ao todo) e inibição de respostas a estímulos neutros. Em contrapartida, o desempenho desse grupo nas tarefas que requeriam flexibilidade cognitiva (mudança de foco de atenção de um padrão de estímulo para outro) apresentou-se significativamente mais comprometido do que os outros dois grupos, reforçando a noção de disfunção executiva na síndrome do autismo.
Teoria da Coerência Central
Diferenças no sistema de processamento da informação em crianças com autismo é a base de outra teoria (Frith, 1989). A falta da tendência natural em juntar partes de informações para formar um ‘todo’ provido de significado (coerência central) é uma das características mais marcantes no autismo. O interessante dessa teoria é que busca explicar não somente os défices mas também as habilidades, as quais podem estar, não somente preservadas, mas inclusive mostrarem-se superiores em indivíduos com autismo. A autora defende ainda que, esta leitura não justificaria apenas os défices de partilha de atenção e de uma teoria da mente, mas explicaria igualmente alguns sintomas visíveis, incluindo a insistência no isolamento, os movimentos estereotipados e repetitivos e um padrão restrito de interesses. Há semelhanças entre essa teoria e a de disfunção executiva. Porém, a teoria da coerência central prediz comprometimento somente naquelas funções executivas que estão associadas à integração de um estímulo dentro de um contexto. Contudo, tal com Leslie e Baron-Cohen, Frith, não conseguiu identificar as estruturas cerebrais subjacentes a este défice.