Alterações no córtex temporal podem causar prejuízo na  percepção de informações importantes para a interação social
 
Ricardo Zorzetto, Revista Fapesp, junho de 2011 (*)
 
Mamãe,  mamãe, descobri que o Capitão Gancho é bonzinho. Ele falou ‘Eu vou   cuidar muito bem de você!’”, anunciou o garoto durante a consulta,  interrompendo  a conversa da mãe com o médico. E repetiu mais duas ou  três vezes a descoberta  que fizera ao assistir ao filme sobre Peter  Pan, para em seguida retomar o  silêncio habitual e voltar a agitar as  mãos  para cima e para baixo como se  quisesse desprendê-las dos braços.  Diferentemente de crianças da sua idade, o  menino de 7 anos atendido  pelo psiquiatra infantil Marcos Tomanik Mercadante não  conseguia  perceber a ironia na fala do vilão, determinada por uma marcante   alteração no tom de voz.
Os sinais que Mercadante observou no garoto são  característicos de um  grupo de distúrbios com prevalência ainda pouco conhecida  no país e que  apenas nos últimos anos começaram a ser mais bem compreendidos –  em  parte, consequência de trabalhos de pesquisadores brasileiros  trabalhando no  país e no exterior. Classificados como transtornos do  espectro autista ou  transtornos globais do desenvolvimento, esses  problemas de origem  neuropsicológica se manifestam na infância e, com  maior ou menor intensidade,  prejudicam por toda a vida a capacidade de  seus portadores se comunicarem e se  relacionarem com outras pessoas.  Incluem quadros variados como o autismo  clássico, marcado por  dificuldades severas de linguagem e de interação social; a  síndrome de  Asperger, na qual a inteligência é normal ou superior à média e a   aquisição da linguagem se dá sem problemas, mas em que são comuns os  gestos  repetitivos e a falta de controle em movimentos delicados; ou  ainda a síndrome  de savant, em que, apesar do retardo mental, a memória ou as  habilidades matemáticas ou artísticas são extraordinárias.
Levantamentos  feitos nos últimos anos registraram um aumento importante  no número de casos  desses transtornos. Há pouco mais de uma década se  acreditava que o autismo e  suas variações fossem bastante raros. Com  base em pesquisas feitas nos Estados  Unidos e na Europa, calculava-se  que uma em cada 2,5 mil crianças – ou 0,04% da  população infantil –  apresentasse algum distúrbio do espectro autista. Hoje essa  proporção é  20 vezes maior. Quase 1% das crianças norte-americanas e inglesas   sofrem de algum desses transtornos de desenvolvimento, segundo dados  recentes  dos Centros para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados  Unidos e de  pesquisas de universidades da Inglaterra. E a taxa pode ser  ainda mais elevada.  Trabalho publicado em maio no American Journal of Psychiatry indica que  a prevalência de distúrbios autistas é de 2,5% na Coreia do Sul.
O mais  provável é que não haja uma epidemia de autismo. Em relatório  apresentado em  2010 à Organização Mundial da Saúde (OMS), especialistas  brasileiros e  estrangeiros indicaram, após analisar quase 600 estudos  sobre o assunto, que o  aumento na taxa desses transtornos parece  decorrer do uso de estratégias mais  abrangentes de diagnóstico e da  maior vigilância de profissionais da saúde –  embora não se possa  excluir completamente uma elevação real no número de  casos.
No Brasil, porém, os dados sobre o problema são praticamente   desconhecidos. Por falta de estudos populacionais, não se sabe com  segurança  quantas são nem onde estão as crianças com transtorno do  espectro autista. Muito  menos se recebem o mínimo de atenção do sistema  de saúde e de educação para que  consigam levar uma vida o mais próximo  do normal possível.
O  maior e mais recente levantamento realizado no país – um  dos únicos  feitos na América do Sul – sugere que o autismo e suas variações  afetam  uma em cada 370 crianças ou 0,3% dessa população. Coordenado por   Mercadante, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Cristiane   Silvestre de Paula, psicóloga e epidemiologista da Universidade  Presbiteriana  Mackenzie, o estudo avaliou sinais de autismo em 1.470  crianças com idade entre  7 e 12 anos, uma amostra considerada bastante  razoável. Mas o trabalho,  publicado em fevereiro no Journal of Autism and Developmental  Disorders,  ainda é um estudo piloto. Sua principal limitação é que foi  realizado  em apenas um município brasileiro: Atibaia, cidade de 126 mil   habitantes a 60 quilômetros de São Paulo. “Fizemos esse estudo,  financiado pelo  Mackenzie, com pouco dinheiro”, conta Mercadante, que  pretende repetir o  levantamento em cidades das cinco regiões  brasileiras. 
 
Em  Atibaia, a psicóloga Sabrina Ribeiro identificou todas as escolas e as   unidades de saúde da região estudada e treinou professores, médicos e   profissionais do programa de saúde da família para identificar sinais de  autismo  nas crianças. Das 1.470 que viviam na área, 94 foram  encaminhadas para testes  clínicos mais detalhados e 4 receberam  diagnóstico de autismo.
Se o  índice observado ali puder ser extrapolado para o resto do país –  inclusive para  os adultos, uma vez que estudo recente na Inglaterra  mostrou prevalência de  autismo semelhante em adultos e crianças –, é de  esperar que existam 570 mil  brasileiros com alguma forma de autismo.  “Alguns trabalhos indicam que a  prevalência de autismo talvez seja mais  baixa entre os latinos”, comenta  Mercadante. “O fato de nossa cultura  exigir mais o desenvolvimento das  habilidades sociais do que as de  muitos países do hemisfério Norte, onde  costumam ser feitos os estudos  epidemiológicos, pode ajudar as pessoas com casos  mais leves a levar  uma vida com certa independência e a não serem identificadas  como  autistas”, diz.
Essa seria uma estimativa favorável. É possível que  os números daqui e  os de outros países estejam subestimados, suspeitam os  pesquisadores  ingleses que realizaram o primeiro estudo de prevalência de  autismo em  adultos, publicado em maio nos Archives of General  Psychiatry.  No trabalho, eles avaliaram sinais de autismo em 7.461 adultos  e  confirmaram que 618 tinham alguma forma do distúrbio. “Em nenhum dos  casos  identificados nesse levantamento as pessoas sabiam que eram  autistas nem tinham  recebido um diagnóstico oficial anteriormente”,  disse Traolach Brugha,  pesquisador da Universidade de Leicester, na  Inglaterra, e autor do estudo, em  comunicado à imprensa.
Embora a maioria dos casos fosse de pouca  gravidade, a constatação  acende um sinal amarelo: mesmo em países com sistemas  de saúde bem  estruturados muitos casos nem chegam a ser conhecidos. Caso as  taxas no  Brasil sejam elevadas como a dos Estados Unidos, pode haver até 1,9   milhão de brasileiros com autismo. “Seria uma bomba para os cofres  públicos”,  diz Cristiane. “Mostraria que é preciso aumentar muito a  capacidade de atender o  problema.”
“O autista demanda tratamento contínuo e dispendioso”, conta  Maria  Cecília Mello, mãe de Nicholas, um jovem de 19 anos que há apenas três   anos recebeu o diagnóstico de síndrome de Asperger. “Eles também  precisam de  acompanhamento especializado para alavancar suas  habilidades específicas e  desenvolver aquelas em que apresentam  dificuldades”, diz a juíza federal,  fundadora, ao lado de Mercadante e  de outros pais e pesquisadores, da  organização não governamental  Autismo & Realidade, criada em 2010 com a meta  de divulgar  informações sobre o distúrbio e arrecadar recursos para financiar   pesquisas na área.
Nos Estados Unidos, onde há estatística para quase  tudo, anos atrás  Michael Ganz, da Universidade Harvard, calculou em US$ 3,2  milhões o  custo para manter um autista ao longo da vida, levando em conta   despesas médicas, de educação e  perda de produtividade no trabalho.
 
No  sistema público de saúde brasileiro, os casos suspeitos de autismo   deveriam, em princípio, ser identificados pelos pediatras nas unidades  básicas  de saúde e encaminhados para cuidado especializado em um dos  128 centros de  atenção psicossocial infantil (CAPSi). Mas esses centros  estão concentrados no  Sudeste e no Nordeste. Cinco estados brasileiros  não têm CAPSi e outros sete  dispõem de apenas um, de acordo com  relatório recente do Ministério da  Saúde.
Mesmo na cidade de São Paulo, a mais bem servida do país, apenas 9  dos  16 CAPSi estão habilitados para atender casos de autismo, segundo  Cristiane.  Ante esse quadro, conta Mercadante, a maioria dos casos é  atendida por  associações de pais e amigos das crianças com deficiência  intelectual, as AMAs e  APAEs. Em São Paulo, uma decisão de 2001 da  Justiça determinou que a Secretaria  de Estado da Saúde pague   tratamento, assistência e educação especializados para  quem tem  autismo.
Sem um levantamento mais amplo como o que ele e  Cristiane planejam,  vive-se um círculo vicioso. “Como não há estudos de  prevalência  abrangentes no país, não se consegue mostrar que o problema existe.  E,  sem provas, fica difícil exigir atendimento”, afirma a epidemiologista,  que  participa de um levantamento de problemas de saúde mental em  crianças de cinco  capitais brasileiras, projeto do Instituto Nacional  de Psiquiatria do  Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes, apoiado  pela FAPESP e pelo governo  federal.
Atendimento médico precoce e de qualidade é fundamental para   influenciar a evolução do autismo. Tanto que, no mundo todo,  pesquisadores  buscam estratégias para identificar com segurança o  autismo já no primeiro ano  de vida. “Quanto mais cedo se identificam os  sinais, melhores as chances de  intervir para tentar recuperar a  capacidade de a criança se relacionar com os  outros e buscar a  construção de uma linguagem significativa”, afirma a psicóloga  e  psicanalista Maria Cristina Kupfer, do Instituto de Psicologia da  Universidade  de São Paulo (USP), fundadora do Lugar de Vida, entidade  que há 20 anos atende  casos de autismo. “A intervenção precoce permite  ainda ouvir os pais, que sofrem  por não receber de volta dos filhos a  atenção que lhes dão.” 
 
Desde  que o autismo foi descrito nos anos 1940, o diagnóstico continua   clínico. Em geral um neurologista ou psiquiatra examina a criança e  avalia sua  história de vida à procura de indícios de atraso no  desenvolvimento da  capacidade de interagir socialmente e se comunicar e  de defasagem no  desenvolvimento motor, descritos no Manual diagnóstico e estatístico de  transtornos mentais, da Associação Psiquiátrica Americana, e na  Classificação Internacional de Doenças, da OMS.
Ainda que alguns  sintomas surjam muito cedo, nos primeiros meses de  vida, os casos só costumam  ser confirmados por volta dos 3 anos de  idade, quando o cérebro já atravessou  uma das fases de crescimento mais  intenso. E isso na melhor das hipóteses.  Mercadante acredita que no  Brasil a identificação só ocorra aos 5 ou 6 anos,  quando já se perdeu  uma fase fundamental do desenvolvimento infantil. No estudo  de Atibaia,  por exemplo, só um dos quatro casos de autismo havia sido  identificado  anteriormente e recebia acompanhamento especializado. “Precisamos   melhorar a capacitação dos pediatras para que identifiquem os sinais o  mais cedo  possível”, afirma Cristiane. 
 
Leonardo  Posternak, pediatra do Hospital Albert Einstein em São Paulo,  pretende  iniciar neste ano, em parceria com uma equipe da Unifesp, um estudo   multicêntrico para avaliar a eficácia de um treinamento de pediatras   desenvolvido por uma entidade assistencial francesa, a PréAut, com  auxílio da  psicanalista brasileira Marie Christine Laznik. Posternak,  que já oferece o  treinamento para os médicos do Instituto da Família,  organização social que  atende crianças e famílias de baixa renda,  planeja treinar, na fase inicial,  pediatras do município de Embu e  medir a capacidade de identificarem o autismo e  outros problemas  psíquicos que levam ao sofrimento precoce. “O pediatra tem de  estar  atento à relação entre pais e filhos e ao dia a dia da família”, diz   Posternak.
 
Anos  atrás Maria Cristina Kupfer tentou criar uma ponte com os pediatras e   auxiliar no trabalho de detecção do autismo. Embora a psicanálise não  use  protocolos de identificação como os da psiquiatria, um grupo de  nove  especialistas coordenado por ela desenvolveu em 1999, com apoio da  FAPESP, uma  série de 31 indicadores para a detecção precoce de risco  para o desenvolvimento  psíquico: o protocolo IRDI. Esse material,  elaborado a pedido da pediatra  Josenilda Brant, consultora da área de  saúde da criança do Ministério da Saúde,  deveria integrar o Manual para o acompanhamento do crescimento e  desenvolvimento, que o ministério distribui aos médicos da rede  pública.
Pediatras de 11 centros de saúde de nove cidades brasileiras  aplicaram  os indicadores a 726 crianças de até 1 ano e meio de idade.   Apresentados em 2009 no Latin American Journal of Fundamental  Psychopathology Online, os resultados mostraram que 15 desses indicadores –  eles avaliavam interações simples como mãe e bebê trocam olhares ou a  criança reage (sorri, vocaliza) quando a mãe ou outra pessoa se dirige a ela  –  eram capazes de predizer, a partir do sexto mês de vida, se havia risco   de desenvolvimento de problemas psíquicos. “Os indicadores do  protocolo IRDI,  adaptados, chegaram a fazer parte da Caderneta da Saúde da Criança,   destinada a orientar os pais,  em 2006, 2007 e 2008 e depois foram  retirados”,  conta Maria Cristina. “Mas os indicadores validados pela  pesquisa não foram  integrados à ficha de acompanhamento do  desenvolvimento, usada pelos pediatras  nas consultas feitas no sistema  público de saúde.”
Apesar do revés, Maria  Cristina não se acomodou. “Se fecharam uma  porta, procuramos outra”, diz a  psicanalista, que planeja testar seus  indicadores em 29 creches do bairro  paulistano do Butantã. “O uso dessa  ferramenta em creches é uma alternativa  interessante, porque as  crianças passam oito horas por dia ali e têm muito mais  contato com os  professores do que com os pediatras”, justifica.
Foi como  problema de contato afetivo, aliás, que os primeiros casos do  que viria a ser  conhecido como autismo foram descritos pelo austríaco  Leo Kanner, psiquiatra do  Hospital Johns Hopkins, nos Estados Unidos.  Em outubro de 1938, Kanner examinou  um garoto norte-americano chamado  Donald Gray Triplett, do Missouri, que desde  muito cedo demonstrava  dificuldade de interagir com pessoas ao mesmo tempo que  tinha fixação  por certos objetos e grande capacidade de memorização. Embora os  sinais  lembrassem o de um problema psiquiátrico grave, a esquizofrenia, Kanner   não conseguiu fechar o diagnóstico de imediato. Nos anos seguintes,  ele reuniu  outros nove casos semelhantes e os apresentou em um artigo  de 1943 intitulado  “Autistic disturbances of affective contact”. No  texto Kanner tomou emprestado o  termo autismo, usado para  descrever o distanciamento e o ensimesmamento  típicos da esquizofrenia.  Um ano mais tarde outro psiquiatra de origem  austríaca, Hans Asperger,  descreveria casos um pouco distintos. Eram crianças  com inteligência e  capacidade de aprendizado de linguagem normais, mas com  dificuldade de  interagir socialmente – sinais que se tornam característicos da   síndrome de Asperger, um dos transtornos do espectro autista.
 
Enquanto  Asperger acreditava na origem biológica desses distúrbios, Kanner os   via como problemas com causas psíquicas, resultado da criação por pais  frios e  distantes. Por influência de pesquisadores como o psicólogo  Bruno Bettelheim,  esta visão prevaleceu por anos e se tornou conhecida  como a “teoria da mãe  geladeira”. “Toda uma geração de pais –  particularmente as mães – foi levada a  se sentir culpada pelo autismo  dos filhos”, escreve o neurologista inglês Oliver  Sacks no livro Um antropólogo em Marte, publicado no Brasil pela  Companhia das Letras.
Esse peso só seria tirado dos ombros dos pais nos  anos 1960, quando  começaram a surgir evidências favorecendo a ideia de que  alterações no  sistema nervoso central estariam por trás do autismo. Mas levaria  algum  tempo para a visão biológica ganhar força. O primeiro grupo a  identificar  o funcionamento anormal no cérebro de crianças autistas foi  o da médica  brasileira Monica Zilbovicius, pesquisadora do Instituto  Nacional da Saúde e da  Pesquisa Médica (Inserm) da França. Usando um  aparelho de tomografia por emissão  de pósitrons, que mede o fluxo  sanguíneo e, portanto, o nível de atividade de  diferentes regiões do  sistema nervoso central, Monica analisou o cérebro de 21  garotos com  autismo e 10 sem o problema – o autismo é quatro vezes mais comum em   meninos do que em meninas. 
Ela verificou que as crianças do primeiro  grupo apresentavam atividade  reduzida no sulco temporal superior, pequena área  do lobo temporal,  segundo resultados apresentados em 2000 no American  Journal of Psychiatry.  “Quatro grupos haviam tentado antes de nós, mas não  encontraram nada”,  conta Monica. “Naquela época, nem sabíamos qual era a função  dessa  área no cérebro normal.” Além de menos ativo, o córtex do sulco temporal   superior, situado na região das têmporas, logo acima das orelhas, era  menos  espesso.
 
Inicialmente  se acreditava que o lobo temporal fosse importante apenas para a   percepção dos sons. Estudos mais detalhados mostraram, porém, que tanto o  sulco  temporal superior como outra área do lobo temporal, o giro  fusiforme, estavam  envolvidos no processamento de dois tipos de  informações relevantes para as  interações sociais. Eles captam  informações auditivas, sobre a voz do  interlocutor, e visuais, como os  movimentos dos olhos, os gestos e as expressões  faciais, processam-nas e  as distribuem para outras áreas cerebrais associadas às  emoções e ao  raciocínio lógico.
É o funcionamento adequado dessas áreas  que permite conhecer a intenção  e a disposição da pessoa com quem se interage.  Quando uma das áreas  está alterada, a percepção de informações tanto visuais  quanto  auditivas é deficiente, como no caso do garoto que não conseguia  perceber  a intenção maldosa na voz do Capitão Gancho. Essas descobertas  levaram Monica a  propor em 2006 que modificações nessas regiões do  cérebro durante o  desenvolvimento seriam responsáveis pelo sintoma mais  frequente do autismo: a  dificuldade de interação social.
Ao mesmo tempo que se mapeavam algumas  das regiões cerebrais envolvidas  no autismo, outro pesquisador brasileiro, o  psicólogo Ami Klin,  começava a identificar por que as crianças com o distúrbio  falhavam em  perceber informações importantes para a interação com outras  pessoas.  Durante o doutorado em psicologia na London School of Economics, Klin   criou um experimento simples que permitiu constatar que os bebês com  autismo têm  uma reação anormal ao ouvir vozes. Ele próprio criou um  aparelho com dois botões  – um reproduzia uma gravação da voz materna e o  outro, a de uma mistura de vozes  – e o apresentou a bebês com menos de  1 ano. Na maioria das vezes, as crianças  saudáveis acionavam o botão  que permitia ouvir a voz da mãe. Já as com autismo  não mostraram  preferência: apertavam ambos indistintamente. Na Universidade  Yale, nos  Estados Unidos, onde dirigiu um programa de estudos sobre autismo,   Klin passou a usar uma técnica que permite rastrear o movimento dos  olhos a fim  de verificar onde quem tem autismo focava a visão no  contato com outras pessoas.  “Se quisermos de fato compreender o que  passa pela cabeça deles, precisamos ver  o mundo pelos olhos deles”,  disse Klin, hoje pesquisador da Universidade Emory,  em uma entrevista  anos atrás.
 
Num  teste com adolescentes saudáveis e autistas, ele constatou que, na  maior  parte do tempo, os primeiros dirigiam a atenção para os olhos do  interlocutor,  padrão que os seres humanos e outros grandes primatas  desenvolvem nas primeiras  semanas de vida – e teria importância  evolutiva por permitir distinguir os  membros da mesma espécie (e suas  intenções) dos predadores. Os autistas focavam  o olhar ao redor da boca  ou nos cabelos, áreas que não fornecem informações  relevantes sobre o  contexto social. No autismo, aparentemente, a capacidade de  buscar  essas pistas sociais se perderia bem cedo na vida, como demonstrou Klin   ao repetir o experimento com crianças de 2 anos. “É provável que, por  esse  motivo, as pessoas com autismo não consigam decifrar a expressão  do rosto do  outro nem demonstrar expressões adequadas às situações  sociais”, comenta  Monica.
É consenso hoje que a formação inadequada das redes neuronais  ligadas à  percepção e ao processamento das informações sociais – o chamado   cérebro social – se deve a defeitos nos genes. “Acredita-se que o  autismo tenha  origem genética importante e que a manifestação do  problema dependa  predominantemente da constituição genética do  indivíduo”, comenta Maria Rita  Passos Bueno, geneticista da USP que  investiga o distúrbio. 
Até o  momento alterações em mais de 200 genes, distribuídos por quase  todos os  cromossomos humanos, já foram associadas ao autismo. Defeitos  em um pequeno  número (10%) desses genes, porém, aparentemente explicam  por completo o  problema. Apesar de haver certo padrão entre os sinais  clínicos, do ponto de  vista genético cada paciente parece ter uma forma  de autismo própria, segundo  Maria Rita. Seu grupo na USP, que em 2009  descreveu alterações nos genes de dois  receptores do neurotransmissor  serotonina, desenvolveu um chip de DNA  para procurar pequenas  alterações em 250 genes responsáveis pelas conexões entre  os neurônios  em 500 crianças com autismo, a maioria diagnosticada pela equipe do   psiquiatra Estevão Vadasz. Das 70 crianças já testadas por Cíntia  Marques  Ribeiro, 20% têm defeitos em ao menos um desses genes.
Mercadante  e a geneticista Patricia Braga, também da USP, tentam  outro caminho.  Em vez de trabalhar com um grupo grande de autistas com  características  clínicas variadas, selecionaram poucos pacientes com quadros   semelhantes a  fim de ver se apresentam alterações genéticas em comum.
 
“Uma  classificação mais geral revela que as alterações gênicas já   encontradas interferem em três vias bioquímicas responsáveis pelo   desenvolvimento dos neurônios, um dos tipos de células que compõem o  cérebro”,  explica o neurocientista brasileiro Alysson Muotri, da  Universidade da  Califórnia em San Diego, Estados Unidos. As vias  bioquímicas afetadas controlam  a proliferação e a maturação de  neurônios e a formação de conexões (sinapses)  entre essas células  cerebrais.
No ano passado a equipe de Muotri  conseguiu um avanço importante para  investigar o que há de errado com os  neurônios no autismo. Como não é  ético extrair células do cérebro de uma  criança, o pesquisador  brasileiro e seu grupo retiraram células da pele de  crianças com  síndrome de Rett – um dos distúrbios do espectro autista – e de   crianças não afetadas para convertê-los em células-tronco, por meio de  um  processo chamado reprogramação genética. Em seguida, essas células  foram  estimuladas em laboratório a se transformarem em neurônios.  Muotri observou que  os neurônios de crianças com Rett apresentavam  cerca de 50% menos projeções  (espinhas) que conectam uma célula a  outra. Em parceria com o grupo de Maria  Rita, ele repetiu o experimento  com células de polpa do dente de crianças com  autismo clássico e  observou resultado semelhante. Dados preliminares mostram um  número  menor de espinhas nos neurônios derivados de crianças com autismo (ver "Conexões do  autismo" na Pesquisa FAPESP nº 173).
“Nunca vamos saber se o que  observamos nesses neurônios em cultura é  fiel ao que ocorre no cérebro”, explica  Muotri. “Ainda assim, acredito  que alguma informação importante seja possível  tirar desse modelo”.  Apesar da dúvida, esse modelo celular do autismo é  promissor. Aplicando  dois compostos – o antibiótico gentamicina e o fator de  crescimento  semelhante à insulina 1 (IGF-1) – durante o desenvolvimento  neuronal,  Muotri conseguiu alterar a estrutura dos neurônios obtidos a partir de   células autistas, que passaram a exibir o aspecto de neurônios  saudáveis. “Ao  mostrar que essas alterações são reversíveis, provamos  que existe um problema  biológico e quebramos o estigma de que o autismo  não tem cura”, diz o  neurocientista.
Ele próprio sabe que a estratégia usada com células em  cultura ainda  não poderia ser aplicada a seres humanos. A gentamicina é  relativamente  tóxica e o IGF-1 aplicado na corrente sanguínea não chega ao  cérebro  de forma eficiente. O resultado, porém, desperta a esperança de que um   dia, num futuro ainda distante, talvez seja possível desenvolver um  tratamento  farmacológico para amenizar os traços do autismo, um  problema ainda sem cura.  
  
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