| © Marie Hippenmeyer | fotos da série Preto e Branco, 2002-2007 | 
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 Leonardo Posternak, pediatra do Hospital Albert Einstein em São  Paulo, pretende iniciar neste ano, em parceria com uma equipe da  Unifesp, um estudo multicêntrico para avaliar a eficácia de um  treinamento de pediatras desenvolvido por uma entidade assistencial  francesa, a PréAut, com auxílio da psicanalista brasileira Marie  Christine Laznik. Posternak, que já oferece o treinamento para os  médicos do Instituto da Família, organização social que atende crianças e  famílias de baixa renda, planeja treinar, na fase inicial, pediatras do  município de Embu e medir a capacidade de identificarem o autismo e  outros problemas psíquicos que levam ao sofrimento precoce. “O pediatra  tem de estar atento à relação entre pais e filhos e ao dia a dia da  família”, diz Posternak.
Anos atrás Maria Cristina Kupfer tentou  criar uma ponte com os pediatras e auxiliar no trabalho de detecção do  autismo. Embora a psicanálise não use protocolos de identificação como  os da psiquiatria, um grupo de nove especialistas coordenado por ela  desenvolveu em 1999, com apoio da FAPESP, uma série de 31 indicadores  para a detecção precoce de risco para o desenvolvimento psíquico: o  protocolo IRDI. Esse material, elaborado a pedido da pediatra Josenilda  Brant, consultora da área de saúde da criança do Ministério da Saúde,  deveria integrar o 
Manual para o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento, que o ministério distribui aos médicos da rede pública.
Pediatras  de 11 centros de saúde de nove cidades brasileiras aplicaram os  indicadores a 726 crianças de até 1 ano e meio de idade. Apresentados em  2009 no 
Latin American Journal of Fundamental Psychopathology Online, os resultados mostraram que 15 desses indicadores – eles avaliavam interações simples como 
mãe e bebê trocam olhares ou a criança reage (sorri, vocaliza) quando a mãe ou outra pessoa se dirige a ela –  eram capazes de predizer, a partir do sexto mês de vida, se havia risco  de desenvolvimento de problemas psíquicos. “Os indicadores do protocolo  IRDI, adaptados, chegaram a fazer parte da 
Caderneta da Saúde da Criança,  destinada a orientar os pais,  em 2006, 2007 e 2008 e depois foram  retirados”, conta Maria Cristina. “Mas os indicadores validados pela  pesquisa não foram integrados à ficha de acompanhamento do  desenvolvimento, usada pelos pediatras nas consultas feitas no sistema  público de saúde.”
Apesar do revés, Maria Cristina não se  acomodou. “Se fecharam uma porta, procuramos outra”, diz a psicanalista,  que planeja testar seus indicadores em 29 creches do bairro paulistano  do Butantã. “O uso dessa ferramenta em creches é uma alternativa  interessante, porque as crianças passam oito horas por dia ali e têm  muito mais contato com os professores do que com os pediatras”,  justifica.
Foi como problema de contato afetivo, aliás, que os  primeiros casos do que viria a ser conhecido como autismo foram  descritos pelo austríaco Leo Kanner, psiquiatra do Hospital Johns  Hopkins, nos Estados Unidos. Em outubro de 1938, Kanner examinou um  garoto norte-americano chamado Donald Gray Triplett, do Missouri, que  desde muito cedo demonstrava dificuldade de interagir com pessoas ao  mesmo tempo que tinha fixação por certos objetos e grande capacidade de  memorização. Embora os sinais lembrassem o de um problema psiquiátrico  grave, a esquizofrenia, Kanner não conseguiu fechar o diagnóstico de  imediato. Nos anos seguintes, ele reuniu outros nove casos semelhantes e  os apresentou em um artigo de 1943 intitulado “Autistic disturbances of  affective contact”. No texto Kanner tomou emprestado o termo 
autismo,  usado para descrever o distanciamento e o ensimesmamento típicos da  esquizofrenia. Um ano mais tarde outro psiquiatra de origem austríaca,  Hans Asperger, descreveria casos um pouco distintos. Eram crianças com  inteligência e capacidade de aprendizado de linguagem normais, mas com  dificuldade de interagir socialmente – sinais que se tornam  característicos da síndrome de Asperger, um dos transtornos do espectro  autista.
Enquanto Asperger acreditava na origem biológica desses  distúrbios, Kanner os via como problemas com causas psíquicas, resultado  da criação por pais frios e distantes. Por influência de pesquisadores  como o psicólogo Bruno Bettelheim, esta visão prevaleceu por anos e se  tornou conhecida como a “teoria da mãe geladeira”. “Toda uma geração de  pais – particularmente as mães – foi levada a se sentir culpada pelo  autismo dos filhos”, escreve o neurologista inglês Oliver Sacks no livro  
Um antropólogo em Marte, publicado no Brasil pela Companhia das Letras.
Esse  peso só seria tirado dos ombros dos pais nos anos 1960, quando  começaram a surgir evidências favorecendo a ideia de que alterações no  sistema nervoso central estariam por trás do autismo. Mas levaria algum  tempo para a visão biológica ganhar força. O primeiro grupo a  identificar o funcionamento anormal no cérebro de crianças autistas foi o  da médica brasileira Monica Zilbovicius, pesquisadora do Instituto  Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm) da França. Usando um  aparelho de tomografia por emissão de pósitrons, que mede o fluxo  sanguíneo e, portanto, o nível de atividade de diferentes regiões do  sistema nervoso central, Monica analisou o cérebro de 21 garotos com  autismo e 10 sem o problema – o autismo é quatro vezes mais comum em  meninos do que em meninas. 
Ela verificou que as crianças do  primeiro grupo apresentavam atividade reduzida no sulco temporal  superior, pequena área do lobo temporal, segundo resultados apresentados  em 2000 no 
American Journal of Psychiatry. “Quatro grupos  haviam tentado antes de nós, mas não encontraram nada”, conta Monica.  “Naquela época, nem sabíamos qual era a função dessa área no cérebro  normal.” Além de menos ativo, o córtex do sulco temporal superior,  situado na região das têmporas, logo acima das orelhas, era menos  espesso.
Inicialmente se acreditava que o lobo temporal fosse  importante apenas para a percepção dos sons. Estudos mais detalhados  mostraram, porém, que tanto o sulco temporal superior como outra área do  lobo temporal, o giro fusiforme, estavam envolvidos no processamento de  dois tipos de informações relevantes para as interações sociais. Eles  captam informações auditivas, sobre a voz do interlocutor, e visuais,  como os movimentos dos olhos, os gestos e as expressões faciais,  processam-nas e as distribuem para outras áreas cerebrais associadas às  emoções e ao raciocínio lógico.
É o funcionamento adequado dessas  áreas que permite conhecer a intenção e a disposição da pessoa com quem  se interage. Quando uma das áreas está alterada, a percepção de  informações tanto visuais quanto auditivas é deficiente, como no caso do  garoto que não conseguia perceber a intenção maldosa na voz do Capitão  Gancho. Essas descobertas levaram Monica a propor em 2006 que  modificações nessas regiões do cérebro durante o desenvolvimento seriam  responsáveis pelo sintoma mais frequente do autismo: a dificuldade de  interação social.
Ao mesmo tempo que se mapeavam algumas das  regiões cerebrais envolvidas no autismo, outro pesquisador brasileiro, o  psicólogo Ami Klin, começava a identificar por que as crianças com o  distúrbio falhavam em perceber informações importantes para a interação  com outras pessoas. Durante o doutorado em psicologia na London School  of Economics, Klin criou um experimento simples que permitiu constatar  que os bebês com autismo têm uma reação anormal ao ouvir vozes. Ele  próprio criou um aparelho com dois botões – um reproduzia uma gravação  da voz materna e o outro, a de uma mistura de vozes – e o apresentou a  bebês com menos de 1 ano. Na maioria das vezes, as crianças saudáveis  acionavam o botão que permitia ouvir a voz da mãe. Já as com autismo não  mostraram preferência: apertavam ambos indistintamente. Na Universidade  Yale, nos Estados Unidos, onde dirigiu um programa de estudos sobre  autismo, Klin passou a usar uma técnica que permite rastrear o movimento  dos olhos a fim de verificar onde quem tem autismo focava a visão no  contato com outras pessoas. “Se quisermos de fato compreender o que  passa pela cabeça deles, precisamos ver o mundo pelos olhos deles”,  disse Klin, hoje pesquisador da Universidade Emory, em uma entrevista  anos atrás.
Num teste com adolescentes saudáveis e autistas, ele  constatou que, na maior parte do tempo, os primeiros dirigiam a atenção  para os olhos do interlocutor, padrão que os seres humanos e outros  grandes primatas desenvolvem nas primeiras semanas de vida – e teria  importância evolutiva por permitir distinguir os membros da mesma  espécie (e suas intenções) dos predadores. Os autistas focavam o olhar  ao redor da boca ou nos cabelos, áreas que não fornecem informações  relevantes sobre o contexto social. No autismo, aparentemente, a  capacidade de buscar essas pistas sociais se perderia bem cedo na vida,  como demonstrou Klin ao repetir o experimento com crianças de 2 anos. “É  provável que, por esse motivo, as pessoas com autismo não consigam  decifrar a expressão do rosto do outro nem demonstrar expressões  adequadas às situações sociais”, comenta Monica.
É consenso hoje  que a formação inadequada das redes neuronais ligadas à percepção e ao  processamento das informações sociais – o chamado cérebro social – se  deve a defeitos nos genes. “Acredita-se que o autismo tenha origem  genética importante e que a manifestação do problema dependa  predominantemente da constituição genética do indivíduo”, comenta Maria  Rita Passos Bueno, geneticista da USP que investiga o distúrbio. 
Até  o momento alterações em mais de 200 genes, distribuídos por quase todos  os cromossomos humanos, já foram associadas ao autismo. Defeitos em um  pequeno número (10%) desses genes, porém, aparentemente explicam por  completo o problema. Apesar de haver certo padrão entre os sinais  clínicos, do ponto de vista genético cada paciente parece ter uma forma  de autismo própria, segundo Maria Rita. Seu grupo na USP, que em 2009  descreveu alterações nos genes de dois receptores do neurotransmissor  serotonina, desenvolveu um 
chip de DNA para procurar pequenas  alterações em 250 genes responsáveis pelas conexões entre os neurônios  em 500 crianças com autismo, a maioria diagnosticada pela equipe do  psiquiatra Estevão Vadasz. Das 70 crianças já testadas por Cíntia  Marques Ribeiro, 20% têm defeitos em ao menos um desses genes.