A incursão de um autista em ambientes e espaços LGBT
Autismo

A incursão de um autista em ambientes e espaços LGBT


Inicialmente, o texto seria sobre a minha experiência enquanto homem homossexual e autista, minhas alegrias, tristezas, decepções e aprendizado. Contudo, o texto desenvolveu-se de tal forma que ele tornou-se mais abrangente e incorporou algumas orientações a adolescentes e jovens adultos autistas (de qualquer orientação ou identidade sexual). Pensei em refazê-lo, mas preferi mantê-lo como tal. Minha vivência é muito longa para caber somente numa postagem e pretendo partilhar em outros momentos um pouco sobre minha vida. Vamos à leitura. 

A incursão de um autista em ambientes e espaços LGBT

“Eu sou homossexual”. A primeira vez que tive certeza da minha orientação sexual foi aos vinte e três anos. Não que antes disso eu não tenha mostrado – ou demonstrado – alguma homossexualidade latente. Tenho uma lembrança de, aos treze anos, no que hoje chamamos de oitavo ano do Ensino Fundamental no Brasil, ter nutrido algum interesse por um colega de classe. Ele era de outro estado e achava-o bonito (ele tinha alguns traços ameríndios). Meu desejo resumia-se em tocar no seu rosto e ser seu amigo. Mas não fui adiante e não criei coragem para seguir com minhas investidas. Penso que seja o que as pessoas chamam de “amor platônico”. Depois de adulto, comentei com um conhecido sobre o meu desinteresse em meninos e em sexo em geral durante minha adolescência e ele disse que minha situação enquanto adolescente e jovem adulto homossexual era de desconhecimento e desprezo pela minha sexualidade e meu corpo. Eu não vejo as coisas assim. Tive muitas questões a trabalhar, como minha fala (dificuldade em pronunciar algumas sílabas e fonemas, como F, V, B, L e R), minha incontinência urinária, a falta de interação e as crises nervosas e convulsões. Meus pais me levavam a terapeutas e pediatras e eu recebia diferentes diagnósticos e laudos: esquizofrenia, depressão, ansiedade e até timidez (coisa que não sou). O desconhecimento sobre autismo, a falta de preparo dos(as) profissionais e a própria questão financeira (afinal, tratar uma criança com uma equipe multidisciplinar não era algo que minha família podia arcar sempre) são problemas que me afetaram e afetam muitas crianças e adolescentes com TEA (Transtorno do Espectro Autista).

Meu primeiro beijo em um homem ocorreu também aos vinte e três anos. Já havia beijado duas meninas antes por pressão de colegas (eles queriam ver o esquisitão “pegar” mulher) e cheguei até a namorar uma dessas garotas. Ela era muito paciente e dedicada. Posso afirmar que foi a primeira pessoa – afora meus familiares – que cultivei algum afeto e carinho. Mas não tinha interesse sexual por ela – por ninguém, para falar a verdade.

Quando tive ciência da minha condição homossexual, eu sabia da existência do preconceito (homofobia) e acreditava que meu destino era ficar só e dependente da minha família para sempre. Tentei negar, mas tudo em vão. Tomei coragem de contar ao meu terapeuta na época. Sua postura foi compreensiva e ele foi bem assertivo no cuidado que deveria ter com as pessoas. Como estava na Universidade, meu pai havia comprado um computador para a realização dos meus trabalhos e pesquisas. Foi também nesse período em que fui exposto ao ciberespaço. Eram os primeiros anos do “novo milênio” e a internet expandia a cada dia. Aventurava-me em “navegar” em páginas e compreender a realidade à minha volta. Eu não sabia da existência de palavras e termos como “gay”, “GLS”, “entendido”, “gay-friendly”, entre tantos outros. Tudo era novidade. As salas de bate-papo e os programas de comunicação instantânea eram famosos na época e funcionavam como uma ferramenta para conhecer rapazes com interesses em comum.

Marquei um encontro com um sujeito que se definia como “gay” e tínhamos a mesma idade. Estava nervoso por conhecê-lo. Foi num bar voltado ao público LGBT. Ao contrário da quase totalidade de homens com quem me comunicava nos chats, ele parecia ser gentil. Ele não havia perguntado sobre o tamanho do meu pênis ou o meu desempenho na cama. Eu não tinha interesses sexuais nele, mas queria saber como era ser homossexual, como era namorar outro homem, como eles se relacionavam... Afinal, eram muitas dúvidas. Muitos homens gays ou bissexuais pensam que, só por você querer conversar, você já está a oferecer algo mais do que uma simples atenção. Quando nos conhecemos pessoalmente, depois de algumas conversas, ele percebeu que eu não era “comum” ou “normal” e eu não sabia interpretar se estava a ser agradável ou cansativo e nem sabia direito o que dizer. Havia treinado algumas frases, mas na hora não conseguia expressá-las com clareza. Ele perdeu a paciência e ainda chamou-me de “retardado”. Não fiquei ofendido, pois já espero esse comportamento das pessoas.

Outros encontros ocorreram. Um deles foi numa casa noturna. Encontramo-nos em frente ao estabelecimento em questão. Não foi uma experiência muito agradável, mas tirei lições positivas dela. O volume da música era muito alto, muitas luzes coloridas, muitas pessoas aglomeradas e eu era capaz de sentir o cheiro de algumas delas e de cigarro (o fumo em ambientes fechados ainda era permitido). Tive mal estar. Minha preocupação era contar os ladrilhos do chão e verificar a disposição do espaço (gosto muito de formas, sobretudo triângulos). Não tinha interesse em dançar; sempre que o fiz, parecia ridículo aos olhos dos outros. Além do mais, esse tipo de espaço é muito ruim para conversar com as pessoas e o meu acompanhante ofereceu-me uma cerveja. Resolvi experimentar e não gostei. Eu fazia uso de medicação e não sabia do perigo das bebidas alcóolicas. Não recordo direito dos acontecimentos após meu primeiro gole. Não sei se fiz espetáculos ou se alguém tirou vantagem do momento.

Eu estava obcecado por “ficar” ou “curtir” com um cara. Eu já sabia de algumas sutilezas dos encontros e namoros, como abraçar e tocar. Mãos dadas e beijos na bochecha eram reservados ao namoro mais sério. Beijo nos lábios era sinal de intimidade e cumplicidade, mas não imaginava como chegar até ele. Pensava que era somente chegar e beijar, já que nos filmes, novelas e séries de TV as pessoas se beijavam com muita frequência e naturalidade. Também observava os outros, como eles faziam e eu aprendia por mim mesmo. 

A parte do sexo é mais problemática. As relações sexuais entre homens normalmente são definidas em ativo (o que penetra) e passivo (o que é penetrado). O que realiza os dois papéis é chamado de versátil ou relativo. Acontece que eu não me enxergo assim. Eu não posso falar pelos outros, mas eu tenho uma sensibilidade sensorial tátil diferente da maioria das pessoas. Alguns tipos de tecido, por exemplo, me deixam incomodado ou com irritação e mal estar. Quando tenho um relacionamento mais íntimo com um homem, valorizo principalmente o toque, beijos e carícias. Muitos homens homoafetivos estão mais interessados em penetrar e/ou em ser penetrados que se esquecem de que as diferentes partes do nosso corpo podem responder de diversas formas quando o assunto o sexo. E que cada um tem seu próprio ritmo e sua própria natureza. Chegava inclusive a recorrer a práticas masturbatórias para satisfazer meus desejos. Isso porque tenho total controle sobre meu corpo e não preciso da presença de outra pessoa. Existe uma prática sexual entre homens (que sempre existiu, na verdade) e que é denominada como gouinage e que eu conhecia como sexo não penetrativo. É uma forma que me agrada e que me satisfaz. Essas questões sexuais (não somente entre homossexuais, mas também entre pessoas heterossexuais) devem ser discutidas e ninguém é um genital. As coisas são mais amplas. É importante que as pessoas discutam e respeitem os limites do(a) parceiro(a).

Com o passar dos anos, tive outros encontros e eu era exposto a novos contatos e aprendia a trabalhá-los e aprender com eles. Nesse período, ganhei a alcunha de “Totem”. Explico. Minha reação, quando estou num grupo, é ficar parado e não dizer nada. Não por timidez, mas por não saber o que dizer. Muitas pessoas a conversar ao mesmo tempo atrapalham minha concentração. Minha postura incomoda algumas pessoas e eu não entendo – não quero entender – o motivo de ter sido chamado assim.

Para ser sincero, eu sou decepcionado com algumas pessoas LGBT. Já fui visto como implicante ou amargurado, mas creio ter minhas razões. Muitas coisas no meio gay (seja o real ou o virtual) são extremamente chatas. O chamado “lifestyle” é o que mais desprezo. Eles vendem uma ideia irreal. Parece que a felicidade se mede pela beleza, por idas a boates e academias, pelo abdômen definido e depilado (que fica exposto nesses torsos descamisados no Grindr) e pelas roupas de grife. Não invejo quem leva esse estilo de vida; muito pelo contrário, respeito e, se são felizes assim, que o sejam. O problema é que você é bombardeado a todo o momento pelos anúncios, pela publicidade, pelas páginas, por toda a indústria que vende isso como o “modelo” almejado, que deve ser alcançado por todos. Desperdicei boa parte do meu tempo por tentar me adequar e me enquadrar nesse meio. E acabava por tornar-me uma caricatura de mim mesmo. Passei anos negando quem sou, num desejo de querer ser “normal” aos olhos dos outros. Até hoje não me aceito plenamente, embora reconheça que é impossível eu querer ser típico. Isso não se aplica somente aos LGBTs autistas, portadores de síndrome de Down ou de necessidades especiais, por exemplo. Quanto mais converso com outras pessoas em grupos e listas de discussões, mais eu percebo que LGBTs pobres, negros(as), idosos(as), gordos(as) e qualquer outra categoria que não se enquadra nesse padrão de jovem, branco e “perfeito” se sentem excluídos de alguma maneira. Para mim, esse “gay way of life”, com suas casas noturnas, bares, saunas etc. não passa de ilusão. Eles não foram feitos para pessoas como eu. Longe de ser um lugar que apregoa a diversidade, esses espaços e estilos de vida são pasteurizados. Há um esforço de padronização e assimilação. Eles vendem a ideia de que para você ser feliz, você precisa frequentar esses locais e consumir determinados bens. Não passa de mais um nicho da cultura pop e de massa. E é triste que muitos homens comprem essa forma de vida sem ao menos questioná-la.

Aí você pode perguntar: "Então, qual é a melhor forma de encontrar alguém?" Isso é complicado, já que pessoas neurotípicas são imprevisíveis e as chances de você encontrar outra pessoa com TEA e com interesses semelhantes ao seu são mínimas. Mas não impossíveis. Depois de anos, eu tenho um companheiro e ele é típico. Conhecemo-nos num ponto de ônibus. Ele me achou engraçado e “diferente”. Temos um relacionamento bom, ele me respeita e compreende meus limites. Procura ler sobre autismo e se informar. E estar com ele também foi positivo para o meu crescimento emocional (bem, isso é o que minha atual terapeuta diz). Temos um monte de problemas de comunicação e ele reclama muito da minha falta de afeto. Isso porque eu consigo expressar meu amor em termos práticos. Eu entendo que, se eu o amo, é porque estou com ele. Se não o amasse, já teria finalizado nosso relacionamento. Aqui vai um recado: pessoas neurotípicas sentem uma necessidade enorme de gestos de afeto. Procure escrever “eu amo você” numa mensagem pelo celular (telemóvel) e dê algum souvenir (“lembrancinha”) às vezes.

Caso não tenha namorado(a) e queira procurar um(a), a internet é uma importante ferramenta. Claro que tem seu lado ruim e todo cuidado é pouco. As redes sociais virtuais voltadas a pessoas LGBTs podem trazer boas expectativas, mas também podem ser prejudiciais. Muitos desses portais e grupos não são sérios e há uma quantidade enorme de pessoas lá que procuram sexo. Não estão interessadas em relacionamento e na amizade que você pode oferecer. É importante que você mantenha um contato virtual prolongado com seu(sua) provável ficante. Aprenda a lidar com a rejeição, por mais cruel que ela pareça. Esperar pelo momento certo para encontrar a pessoa querida é extremamente importante. Quando não se é paciente, as chances de encontrar com pessoas más intencionadas são maiores e você pode magoar-se e sofrer muito. Não se oprima e não se preocupe o quão estranho você possa parecer aos outros. E antes de tudo: ter sucesso no relacionamento é um desafio. Você tem coisas incríveis a oferecer. Tentar e errar não faz de você um perdedor.



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