Autismo, homossexualidade e religião – uma conciliação
Autismo

Autismo, homossexualidade e religião – uma conciliação


Fonte: GC&Cie.com
Neste texto, pretendo discutir temas como a minha espiritualidade, minha relação com o divino e como tudo isso se relaciona com a questão da homossexualidade e do autismo. Bem, em primeiro lugar, gostaria de dizer que a minha intenção neste post não é discutir religião de uma maneira geral, e sim comentar a relação autismo, homossexualidade e religião, apenas isso. Não quero comparar uma religião com a outra ou vir com o argumento de que a religião faz mais mal do que bem às pessoas – ou o contrário.

“Homossexual e cristão? Como assim?”, “Você vive em contradição!”, “Aos olhos da Bíblia e da Tradição, você está errado”... Essas são algumas frases que escuto ou leio quando digo que sou homossexual e cristão. Tanto de pessoas religiosas e – principalmente – de pessoas não (muito) religiosas (!!!). Quando resolvi assumir uma postura religiosa, alguns conhecidos ficaram surpresos. Afinal, nunca fui muito fã de religião; minha postura era de indiferença.

Nasci e cresci numa família não religiosa. Meus pais tiveram um casamento religioso por pressão da minha avó, que era a única pessoa devota. Alguns tios tinham alguma ligação cultural com os ritos católicos, onde batizavam seus filhos e filhas, mas depois sumiam e ficavam anos sem pisar numa igreja ou templo. Algo basicamente “étnico”, sem nenhuma ligação com o espiritual ou sagrado. E eu cresci assim e achava muita graça quando os meus colegas de classe e vizinhos iam ao “catecismo” ou à “escola dominical”. Não via sentido em perder meu (precioso) fim de semana e lazer, em que eu podia ser livre e brincar no quintal da minha casa. 

A religião entrou na minha família após a morte do meu irmão mais novo. Tínhamos muitas características em comum (ele também não era verbal), e ainda havia adquirido poliomielite e teve seus movimentos afetados. Minha mãe e meu pai dedicaram muito de suas vidas e finanças para dar um pouco de dignidade a ele. Ele faleceu devido a problemas agravados pela sua doença. Meus pais ficaram muito tristes. Foi aí que minha mãe buscou conforto na religiosidade popular tão característica do interior do meu estado. Ela procurava auxílio nas benzedeiras para aguentar a vida e educar seus filhos. Eu ganhei a alcunha de “anjo da guarda” por uma dessas senhoras, pois estava sempre com a minha mãe e necessitava de seus auxílios.  Minha mãe também procurou alguma ajuda num grupo de católicos carismáticos, uma ramificação dentro da Igreja Católica que se assemelha muito ao pentecostalismo. Eu estranhava, porque nunca íamos às igrejas ou templos e depois começamos a ir com frequência. Mas eu gostava, porque tinha a parte dos lanches e brinquedos  e eu adorava. Mesmo assim, esse entusiasmo abrandou-se muito e deu lugar ao catolicismo “cultural” de boa parte dos brasileiros.

Confesso que é difícil ser imparcial quando tratamos de assuntos polêmicos como a religiosidade. Somos tomados pela paixão e tendemos a impor nossa visão no debate. Na minha convivência (virtual e real) com pessoas no espectro do autismo, percebo que muitos não são religiosos ou espirituais, uma vez que as crenças e os dogmas parecem ilógicos muitas vezes. Conceitos como Deus e a transcendência são abstratos. As crenças são marcadas por sentimentos de um relacionamento pessoal com o divino e o sagrado. Realmente é um tema difícil a ser compreendido.

Deveras, muita coisa vinda do mundo religioso deixa-me incomodado. Por exemplo, a ideia de que Deus castiga as pessoas. Muitas religiões ou doutrinas religiosas tratam a deficiência (física e/ou mental) como uma espécie de castigo imposto por Deus às pessoas ou à suas famílias. Isso quando não tratam “surtos psicóticos” e “colapsos mentais” como “possessão demoníaca”. Há ainda aqueles que tratam o autismo, a esquizofrenia e outras “deformidades” como uma espécie de punição dada à pessoa, pelo aquilo que é chamado de carma. Eu não concordo com isso. Isso contraria a ideia de um Deus justo e misericordioso.

Muitas vezes questionei o “mal que eu fiz” para merecer o autismo e o mal que sofri. Muitas vezes “enxotei” Deus da minha vida. Mas consigo ter uma clareza melhor. O autismo é uma característica minha, assim como a minha tonalidade de pele, a cor dos meus olhos, entre tantas outras coisas. A razão para a existência do mal no mundo não é culpa de Deus, mas encontra-se no próprio ser humano, que deseja o bem, mas não o pratica, dando lugar ao mal em nossas vidas.

"Eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu alcance, não porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero". Romanos 7,18-19

Somos responsáveis individualmente pelo todo. Qualquer ação individual exerce efeito sobre os demais. Foi aí que aprendi que não adianta culpar Deus pelos meus problemas e pelos problemas dos outros. Ele criou-nos livres. O que devemos fazer é promover o bem e evitar o mal. Contribuir para a paz e a justiça, transformar inimigos em amigos, amar o próximo como a nós mesmos. Aprendi isso tudo quando me matriculei num curso de catequese para adultos (sou cristão católico). Para mim, a minha igreja é o lugar onde sou apoiado e apoio os outros – embora seja o ideal, nem sempre é a realidade. É o local onde vivo minha espiritualidade e tenho minha relação com Deus. É onde tento permanecer nos caminhos de Jesus, que continuam atuais e revolucionários. Um dos maiores ensinamentos do Nazareno é a inclusão. Que não importa quem somos, que Ele sempre nos amará e que somos belos aos olhos de Deus.

E a questão da homossexualidade?

Não tenho muito que falar. É fato que tanto na Bíblia quanto na tradição cristã a homossexualidade não foi [é] bem vista. Como o principal “fim” da união sexual é a geração de filhos, qualquer tipo de sexualidade fora desse objetivo era considerado “desviante”, o que pode ser explicado [1]. Mesmo assim, a Igreja tem dado alguns passos quanto ao respeito pela pessoa, conforme ensina o Catecismo da Igreja Católica:

A homossexualidade designa as relações entre homens ou mulheres, que experimentam uma atracção sexual exclusiva ou predominante para pessoas do mesmo sexo. Tem-se revestido de formas muito variadas, através dos séculos e das culturas. A sua génese psíquica continua em grande parte por explicar. [...] Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas. [...] Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição.

Sim, a Igreja convida as pessoas homossexuais à castidade. Esse é um ponto complexo, uma vez que as relações homoafetivas podem envolver atividades sexuais. Eu já discuti vagamente um pouco sobre a questão da sexualidade entre homens homossexuais. A Igreja, enquanto instituição, é formada por pessoas que ficam sujeitas ao desconhecimento e a erros. Tanto as relações heterossexuais quanto as homossexuais podem ser ligações duradouras de dedicação e amor. Eu encaro que todo amor vivido de forma responsável e com o devido respeito à dignidade do(a) parceiro(a) como válido. Toda sexualidade é um dom de Deus e deve ser comemorada com dignidade. Penso que as Igrejas – e as religiões em geral – precisam estar mais sensíveis a essas questões, sem ater-se a bandeiras e partidarismos.

Mesmo com algumas pequenas discordâncias, sou feliz por frequentar uma comunidade religiosa. Ser um homem religioso neste século é um desafio, mas também é gratificante. Vivemos em um mundo plural, com diversas religiosidades. Compreendo que cada pessoa tem sua história e experiências e tenho profundo respeito por cada escolha. Mesmo que seja cristão, sei que não tenho o monopólio de Deus, da verdade e da bondade. Uma das maiores contribuições da fé cristã é que, independentemente de quem quer que seja, todas as pessoas são igualmente preciosas aos olhos de Deus e que a tarefa que temos é valorizar e amar ao próximo.

Para finalizar...

Este assunto não se encerra aqui. Pretendo discuti-lo com mais adiante e relatar mais experiências. Apenas gostaria que soubessem que, quando penso em Deus, penso nEle como um Pai amoroso. Não consigo pensar em Deus como um sujeito mau, que castiga e faz as pessoas sofrerem pelos erros de seus pais ou seja lá o que for.

E, confesso, não gosto muito do termo “autismo”. Acho-o limitador. Todos nós, de alguma forma, temos nossas limitações. Uma pessoa “normal” também nasce com uma série de deficiências, que não chamam tanto a nossa atenção por não serem explícitas visualmente. São limitações internas ou relativas ao ambiente social e familiar, porém não menos dramáticas. Assim como todos nós somos imperfeitos, também todos nós somos imensamente abençoados. E é aí que reside a diversidade. Temos motivos de sobra para ter esperanças e sorrir!

[1] Eu tenho uma teoria – que na prática é puro achismo mesmo – que a proibição da homossexualidade entre os povos do Oriente Médio – hebreus incluídos – precisa ser contextualizada. Numa época em que a taxa de mortalidade era alta e catástrofes, doenças e epidemias dizimavam povos inteiros, é compreensível que as sexualidades não reprodutivas fossem proibidas ou desestimuladas. Além do mais, as declarações condenatórias do apóstolo Paulo de Tarso não podem ser entendidas literalmente, uma vez que sua preocupação era distinguir o máximo o cristianismo primitivo das religiões e costumes greco-romanos, onde a prática da pederastia era estimulada. 


Fontes:

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2013. 

Catecismo da Igreja Católica. Parágrafos 2196-2557. Disponível em http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p3s2cap2_2196-2557_po.html (acesso em 30/08/2015)



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