VALIDADE E CONFIABILIDADE DE UMA ESCALA PARA A DETECÇÃO DE CONDUTAS AUTÍSTICAS
FRANCISCO B. ASSUMPÇÃO JR. *, EVELYN KUCZYNSKI**, MARCIA REGO GABRIEL***, CRISTIANE CASTANHO ROCCA****
RESUMO - O objetivo deste estudo foi, a partir da análise de uma população de 31 pacientes portadores de deficiência mental e de 30 pacientes diagnosticados como portadores de autismo, conforme os critérios diagnósticos do DSM-IV, traduzir, adaptar e validar a escala de traços autísticos, construída em Barcelona por Ballabriga e colaboradores. O ponto de corte encontrado foi 15 (p= 0,05); o coeficiente de variação (confiabilidade), 0,27; a validade externa mostrou baixa concordância (kappa= 0,04) e a validade interna foi 100%, mostrando que, em todos os pacientes avaliados, os diagnósticos clínicos concordaram com os realizados através da escala. O índice de correlação foi 0,42, mostrando-se específico para os quadros autísticos. Apresentou ainda, capacidade de discriminação e consistência interna, com alfa de Cronbach 0,71 . Consideramos, assim, que a escala mostra-se confiável para a sua utilização em nosso meio.
PALAVRAS-CHAVE: autismo, diagnóstico, escala de avaliação.
O autismo infantil é visto hoje como um transtorno de desenvolvimento caracterizado por incapacidade qualitativa na integração social, na comunicação verbal e não verbal, com repertório de atividades e interesses acentuadamente restritos, com início antes dos 3 anos de idade
1. É considerado um transtorno predominantemente cognitivo
2-4, tendo como característica central a impossibilidade de compreensão do estado mental das demais pessoas conforme o referido por Hobson
5 e mais tarde bastante estudado por Baron-Cohen e col.
6 que caracteriza os quadros autísticos como uma falha na, assim chamada, "teoria da mente", ou seja uma incapacidade em compreender os próprios estados mentais ou os de outras pessoas., embora o próprio Hobson
5 refira o déficit comunicacional como fator também importante nos quadros autísticos. Sua relação íntima com a deficiência mental também existe, de tal modo que Wing
7 propõe um "continuum" no qual a variabilidade sintomatológica é decorrente do comprometimento intelectual, passando a ser de importância o rastreamento desses quadros de maneira a que não se superponham seus diagnósticos aos de retardo mental.
A identificação de autismo é assim, de fundamental importância, e as escalas de avaliação permitem mensurar as condutas apresentadas de maneira a se estabelecer um diagnóstico de maior confiabilidade. Apresentam-se estas sob a forma de questionários, de lista de sintomas ou de inventários
8. Essas escalas, inspiradas nas ciências exatas, embora utilizadas algumas vezes de maneira indiscriminada, podem ser aplicadas na criança para avaliação de aspectos específicos do comportamento
9. Dessa maneira, devem ser utilizadas para pesquisa ou para avaliação da evolução de determinados quadros. A escala de traços autísticos (ATA), elaborada por Ballabriga e col.
10, nasceu a partir da discussão dos aspectos mais significativos da síndrome, partindo-se de diferentes instrumentos e da experiência clínica dos autores, sendo, entretanto, embasada primordialmente nos critérios diagnósticos do DSM III-R
11. Isso porque a sua aparição unificou uma série de critérios, embora, conforme referem Volkmar e col.
12, seja extremamente ampla e muito pouco específica, envolvendo uma série de quadros e mesmo de sinais que pertencem a um grupamento muito maior de quadros.
O objetivo deste estudo foi verificar a aplicabilidade da referida escala em nosso meio, adaptando-a aos atuais critérios do DSM IV. Esse embasamento, bem como sua fácil aplicabilidade, tornam-na passível de ser utilizada por pessoal não especializado com a finalidade de triar casos suspeitos de autismo, bem como por profissionais não médicos que tenham o intuito de avaliar o desenvolvimento da criança autista durante programas de reabilitação.
MÉTODO
A escala ATA é composta por 23 subescalas, cada uma das quais dividida em diferentes itens (Anexo I). Sua construção foi realizada levando-se em conta os critérios diagnósticos do DSM-III, DSM-III-R e da CID-10 e, na nossa padronização, foram utilizadas também as correções de critérios decorrentes da publicação do DSM-IV
1. Assim sendo, quinze das suas subescalas são representativas dos três critérios básicos e somente as subescalas 8, 10 e 15 são apontadas como itens adicionais nas escalas ERCN ("Échelle d'évaluation resumée du comportement autistique"), ERCA-IIIA ("Échelle d'évaluation resumée du comportement du nourrison") e na escala de Riviére. As subescalas 1, 16 e 21 são aquelas que se apresentam com maior frequência nos instrumentos diagnósticos revisados pelos autores.
Assim sendo, a partir de sua construção, pode-se observar que a escala ATA é um instrumento de fácil aplicação, acessível a profissionais que têm contato direto com a população autista, por exemplo, professores, bem como pais, informando o estado atual do paciente. Ela é aplicada por profissional conhecedor do quadro, embora não necessariamente médico, sendo ele o responsável pela avaliação das respostas dadas, em função de cada item. Não é portanto uma entrevista diagnóstica, mas uma prova estandardizada que dá o perfil conductual da criança, embasada nos diferentes aspectos diagnósticos. Baseia-se na observação e permite fazer seguimentos longitudinais da evolução, tendo por base a sintomatologia autística, auxiliando também a elaboração de um diagnóstico mais confiável desses quadros. É administrada após informação detalhada dos dados clínicos e evolutivos da criança, podendo auxiliar no processo terapêutico, possibilitando a avaliação constante. Pode ser aplicada a partir dos dois anos de idade e, mesmo considerando-se que apresenta muitos itens específicos, os autores referem tempo pequeno para sua aplicação, ao redor de 20 a 25 minutos. Na aplicação em nossa população, o tempo médio ficou entre 20 e 30 minutos, aproximadamente.
A escala se pontua com base nos seguintes critérios: cada subescala da prova tem um valor de 0 a 2; pontua-se a escala positiva no momento em que um dos itens for positivo; a pontuação global da escala se faz a partir da soma aritmética de todos os valores positivos da subescala.
Para a adaptação ao nosso meio, o questionário foi traduzido do espanhol para o português, com posterior correção realizada por profissional competente na área e na língua de origem do questionário. Posteriormente, foi aplicado em 30 crianças diagnosticadas como portadoras de síndrome autística, provenientes do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do HC/FMUSP e diagnosticadas por diferentes profissionais, a partir dos critérios diagnósticos do DSM-IV
1. Foi aplicado também em 31 crianças portadoras de deficiência mental em grau moderado (36<QI<50), provenientes do Centro de Habilitação da APAE-SP e diagnosticadas por equipe multidisciplinar composta por pediatra, neurologista, psiquiatra, psicólogo e assistente social. Ambas as populações eram similares sob o ponto de vista sócio-econômico.
Sabendo-se que a incidência do fenômeno na população é de 0,0004, podemos calcular a estimativa do tamanho da amostra com intervalo de confiança de 95% e erro máximo de 2 unidades para uma população de 75000 pessoas. Esse número corresponde a 29 e assim, a mostra de 30 é representativa, uma vez que para 30 elementos teremos um erro máximo de 1,3 unidades.
Os questionários foram aplicados por duas psicólogas e ambas as populações apresentavam idades entre 2 e 18 anos. Os dados obtidos foram estudados mediante análise da variância de cada um dos itens, variância total e alfa de Cronbach.
RESULTADOS
A média do total de pontos obtidos foi 15,76 (±8,61) para a população portadora de deficiência mental e 31,56 (±8,32) para a população autista. O ponto de corte encontrado foi 15, para p = 0,05, com erro padrão de 1,5 e coeficiente de variação (confiabilidade) de 0,27. Em relação à validade externa, podemos observar que a concordância obtida entre os critérios do DSM-IV é baixo, com kappa da ordem de 0,04. Na análise da consistência interna da escala utilizando o coeficiente alfa de Cronbach, obtendo-se o valor 0,71, que pode ser considerado alto (Tabelas 1, 2 e 3).
Cinco itens (5, 7, 8, 13 e 23) apresentaram baixa correlação com os demais, embora somente o de número 23 tenha se mostrado negativo. A validade interna encontrada foi 100%, uma vez que todos os pacientes diagnosticados clinicamente concordaram com o diagnóstico apresentado pela escala em questão.
Na comparação entre as amostras de pacientes autistas e de pacientes portadores de deficiência mental, encontramos média de 15,76 pontos para portadores de deficiência mental contra média de 31,56 para os portadores de autismo, mostrando assim índice de correlação de 0,42, o que denota a especificidade da observação em relação aos quadros autísticos.
DISCUSSÃO
A avaliação de comportamentos que permita o reconhecimento de traços autísticos e, em consequência, possibilite um diagnóstico populacional é de extrema importância uma vez que muitos dos portadores do quadro misturam-se com a população deficiente mental, ficando restrita a esse atendimento e não sendo passíveis de identificação.
A proposta deste estudo foi a de validar a escala de traços autísticos, desenvolvida em Barcelona, adaptando-a ao DSM-IV e à realidade brasileira, uma vez que ela permite avaliar, de maneira confiável, as condutas autistas na criança. O ponto de corte obtido (15), para p=0,05 e coeficiente de variação de 0,27, permite-nos estabelecer uma suspeita diagnóstica bastante precisa do quadro em questão. Esse dado pode ser utilizado com a finalidade de um primeiro diagnóstico a ser realizado em grandes populações nas quais a suspeita de autismo confunde-se com quadros de retardo mental ou de outras patologias psiquiátricas. A diferença observada por nós, nos escores obtidos em ambas as populações estudadas, mostra sua sensibilidade para a detecção de quadros suspeitos. Assim, embora não dispense o diagnóstico clínico, este instrumento permite uma primeira triagem desses quadros e, posteriormente, pode ser utilizado também como guia da evolução do tratamento, pois engloba as diferentes áreas comprometidas pela patologia..
Apresenta grande sensibilidade (0,96) em relação aos critérios do DSM-IV, para os quais foi adaptada, considerando-se que em sua construção foram utilizados os critérios do DSM-III e do DSM-III-R Embora não substitua nem proponha critérios diferentes daqueles utilizados pelos atuais sistemas classificatórios, pois é baseada em um deles (DSM-IV), acreditamos que sua utilização se mostre de grande valia para o estudo do autismo em nosso meio, visto que pode ser aplicada por profissionais treinados em seu uso mesmo que não tenham formação psiquiátrica.
REFERÊNCIAS
1. APA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais - DSM-IV. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
2. Baron-Cohen S. Social and pragmatic deficits in autism: cognitive or affective? J Autism Dev Disord 1988;18:379-401.
3. Baron-Cohen S. Autism, a specific cognitive disorder `mind - blindness'. Int Rev Psychiat 1990;2:81-90, 1990.
4. Baron-Cohen S. The development of a theory of mind in autism: deviance and delay? Psychiat Clin N Am 1991;14:33-52.
5. Hobson RP. What is autism? Psychiat Clin N Amer 1991;14:1-18.
6. Baron-Cohen S, Leslie AM, Frith U. Does the autistic child have a theory of mind? Cognition 1985;21:37-46.
7. Wing L. The autistic continuum. In Wing L. Aspects of autism: biological research. London: Royal College of Psychiatrists & The National Autistic Society, 1988.
8. Barthélémy C. Évaluations cliniques quantitatives em pédopsychiatrie. Neuropsychiatrie de l'Enfance 1986;34:636-691.
9. Lelord GF. Remarques sur les échelles d'évaluation. Neuropsychiatrie de l'Enfance 1986;34:119-121.
10. Ballabriga MCJ, Escudé RMC, Llaberia ED. Escala d'avaluació dels trests autistes (A.T.A.): validez y fiabilidad de una escala para el examen de las conductas autistas. Rev Psiquiatria Infanto-Juvenil 1994;4:254-263.
11. APA, Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais - DSM-III-R. São Paulo: Manole, 1989.
12. Volkmar FR, Bergman J, Cohen DJ, Ciccheti DN. DSM-III and DSM III-R diagnosis of autism. Am J Psychiatry 1988;145:1404-1408.
Estudo realizado no Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de São Paulo (USP): *Professor Livre-Docente do Departamento de Psiquiatria da FMUSP; **Pediatra, Psiquiatra da Infância e da Adolescência, Pós Graduanda do Departamento de Psiquiatria da FMUSP; ***Psicóloga, Pós Graduanda do Programa de Neurociências da Faculdade de Psicologia da USP; ****Psicóloga, Pós Graduanda do Programa de Fisiologia Funcional da FMUSP.
Dr. Francisco B. Assumpção Jr. - Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas FMUSP - Av. Dr. Ovídio Pires de Campos s/n - 05403-900 São Paulo SP - Brasil.
Artigo original:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X1999000100005&lng=pt&nrm=iso
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